Duas verdades de Jorge Furtado
Relançamento de Ilha das Flores e Saneamento Básico, o Filme traz reflexões sobre o que é sincero no cinema
Pouco se arrisca quem afirma que Ilha das Flores (1989, Jorge Furtado, BRA) é o filme educacional mais visto do Brasil. O curta-metragem, favorito dos professores de geografia do Oiapoque ao Chuí, é emblemático na mistura bem-sucedida de cinismo com informação, e prenuncia um estilo de montagem que, levado às últimas consequências, se faz presente em cada scroll pelos tiktoks e reels da juventude atual.
Ao acompanhar a trajetória de um tomate desde sua produção agrícola até seu derradeiro fim como resto de ração suína que se torna alimento de uma comunidade miserável, o filme do gaúcho Furtado opera em um didatismo, à época, “estricnado”, excessivo. O narrador, munido de uma pompa publicitária, repete definições excessivamente simplistas sobre uma montagem expansiva e rápida, em que colagens de jornal se sobrepõem a planos de objetos isolados e dramatizações toscas da trama.
É um procedimento narrativo análogo ao da filosofia analítica, que encastela descrições de objetos, sujeitos e fenômenos na tentativa de solucionar problemas da ordem do conhecimento. No percurso, a caracterização é sempre retomada sob o pretexto de elucidar o próximo passo de um encadeamento, à primeira vista, puramente lógico.
Tais características metodológicas dão consistência ao letreiro que abre o curta: “Isso não é um filme de ficção”. Seria fácil perder isso de vista com a utilização dos dispositivos satíricos de que lança mão o diretor. O que está em jogo, por aqui, é a verdade de uma argumentação.
O ritmo muda, no entanto, quando entramos no território da Ilha das Flores. A câmera se acalma, abatida pela brutalidade do que filma. Ultrapassamos a fronteira da dramatização, e o que assistimos é a dura realidade de mulheres e crianças que vasculham pilhas de alimentos podres que não serviriam nem de alimento para porcos. Em pouco mais de dez minutos, há poucas oportunidades para uma mudança de tom - e Jorge Furtado é certeiro.
A mensagem é implacável, e a crítica jamais perdeu sua atualidade. A vida humana, sem dinheiro e sem dono, segue valendo menos que a perspectiva de lucro com a domesticação de outros animais. Se engana quem supõe que a mensagem de Ilha das Flores é que nenhum porco deveria valer mais que um ser humano - ao contrário, o que revolta o espectador é a hipótese de que algum desses poderia valer menos.
Nessa constatação reside um sem-número de verdades que Furtado propõe. A primeira é a documental, representação da realidade “tal como ela é” em um sentido de documento de um fenômeno social. A segunda é política, e resulta da anterior: é a da prova cabal da desumanização causada pela desigualdade socioeconômica. A terceira é uma verdade moral: a da crueldade inerente a este processo, resultado direto de uma ação humana que privilegia o abastecimento do sistema produtivo (nesse caso, a engorda de porcos para a venda) em detrimento da dignidade de outros seres humanos. Todas essas verdades são cinema - e, portanto, não podem ser encaradas como a realidade final da situação apresentada -, realizado “de verdade” por Furtado e sua equipe, como bem nos repetem os letreiros de créditos.
O que revolta o espectador é a hipótese de que algum desses poderia valer menos.
É enriquecedor que um filme de tamanha potência provocativa possa habitar as telas dos cinemas país afora, oportunidade ensejada pela remasterização em 4K de Ilha e Saneamento Básico, o Filme (2007, Jorge Furtado, BRA), que reestreiam no circuito comercial hoje (29 de março). Toda sessão é dupla, e a sequência é a mesma emulada por essa crítica: primeiro o curta, depois o longa. Das guitarras distorcidas que ressignificam O Guarani (ou a Voz do Brasil) à interlocução direta de Fernanda Torres com a câmera.
Saneamento Básico, diferente de seu antecessor, não é um documentário. Muito pelo contrário, é uma ficção que retrata a criação de outra ficção - um filme de ficção científica cuja origem é uma farsa (vejamos bem, um sinônimo cínico de ficção) burocrática.
Para obter recursos para a construção de uma fossa em uma comunidade rural de Bento Gonçalves, município do interior gaúcho, Marina (Fernanda Torres), sua irmã Silene (Camila Pitanga) e os respectivos companheiros Joaquim (Wagner Moura) e Fabrício (Bruno Garcia) desenvolvem um filme de baixíssimo custo sobre um monstro que, olha só, foi acordado de seu sono centenário pela construção… de uma fossa!
Desde o princípio, o diretor explicita suas duas principais intenções, que se retroalimentam: a de um discurso metalinguístico, isto é, de criar um filme sobre a criação de um filme; e, novamente, a sátira como comentário social. A odisseia da produção cinematográfica é, antes de tudo, uma consequência do imobilismo burocrático do poder público, com quem é mais difícil argumentar do que enganar.
A comédia do longa opera fundamentada na cacofonia. Os ótimos diálogos de Jorge Furtado são repletos de interrupções, que conferem à montagem a liberdade de trabalhar novamente em um ritmo elevado, e amparam-se com consistência na confusão lexical - a ambiguidade da definição das palavras, ou seu completo desconhecimento, ensejam algumas das melhores sequências do filme. Por um caminho mais tortuoso, Furtado segue operando um discurso sobre a verdade e o sentido (seja ele correto ou não) das palavras.
Aqui, o humor toma a dianteira em relação à crítica social, mas esta não deixa de se manifestar na plasticidade do poder público, seus entraves burocráticos e na constante necessidade do Prefeito (Sérgio Lulkin) em tomar para si os créditos de quaisquer iniciativas que aparentem sucesso. Há, também, uma espécie de resistência do modo de vida interiorano frente às pressões da metrópole, que aparece com predominância no discurso de Zico (Lázaro Ramos), um editor de vídeo da parte urbana de Bento Gonçalves que é contratado para salvar o filme, reescrever algumas cenas e, é claro, girar os holofotes para “Silene Seagal”, a grande estrela do filme.
Outro traço evidente da criação de Jorge Furtado é o naturalismo dinâmico, mas acessível da câmera, que alterna entre o movimento livre nas mãos de seu operador e a mise-en-scène estática e por vezes teatral, calculada para realçar as estrelas do cinema nacional que contracenam com grande química. O diretor, afinal de contas, é um realizador profícuo das telonas ao mesmo tempo em que é um roteirista de mão cheia na televisão - os dois formatos se mesclam, para o bem ou para o mal, em suas produções.
Saneamento Básico, o Filme é um dos grandes sucessos do cinema brasileiro dos anos 2000. Ainda que uma revitalização questionável, frente às inúmeras produções que sofrem com menor visibilidade e arquivos muito mais deficitários, é certo que seu retorno às telonas representa uma tendência positiva de valorização da nossa história. Às vezes é preciso garantir o passo seguro antes de ostentar saltos ousados. Resta esperar que as articulações dos órgãos de tomada de decisão estejam em dia, e seus tendões bem alongados.
Título: Ilha das Flores (Original)
Direção: Jorge Furtado
Ano: 1989
Nacionalidade: Brasil
Produtora: Casa de Cinema de Porto Alegre
Elenco principal: Paulo José (narração)
Equipe: Jorge Furtado (Roteiro), Giba Assis Brasil (Montagem), Geraldo Flach (Trilha Sonora), Roberto Henkin e Sérgio Amon (Direção de Fotografia)
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Título: Saneamento Básico, o Filme (Original)
Direção: Jorge Furtado
Ano: 2007
Nacionalidade: Brasil
Produtora: Casa de Cinema de Porto Alegre, Globo Filmes
Elenco principal: Fernanda Torres, Wagner Moura, Camila Pitanga
Equipe: Jorge Furtado (Roteiro), Giba Assis Brasil (Montagem), Fiapo Barth (Direção de Arte), Jacob Solitrenick (Direção de Fotografia)