Explode São Paulo, Gil, e leva contigo esse nosso cinema mofado
Pelo prazer de trabalhar o ofício de errar
No longo monólogo de abertura de Explode São Paulo, Gil (2025, Maria Clara Escobar, BRA), uma mulher (Gilda Nomacce) de chinelos, sem maquiagem e com roupas simples, conversa sobre suas experiências de emprego na lavanderia de uma casa — virtuosismo na atuação sobre um texto banal, que faz lembrar das experimentações do Coutinho de Jogo de Cena (2006, BRA), mas que aponta também para algo além: a câmera impassível conjuga, num jogo de opostos, a amplidão temporal do plano com a claustrofobia suscitada pelo enquadramento.
Esse jogo relacional entre tempo e espaço se manterá durante todo o filme, por vezes com o sentido alterado, a depender do local gravado; um bar popular com karaokê ou uma padoca paulista pós-porre são mais calorosos do que as ruas cheias de carros na hora do rush ou um estúdio de gravação. De todo modo, manter a duração específica de cada unidade de ação permite que sua relação com o ambiente que a envolve se construa em frente aos nossos olhos, integrando as figuras humanas ao fundo comum e a um tempo compartilhado.
A história que é contada se presta bem a isso, não pelo encaixe perfeito, mas pela contradição inerente entre meio trilhado e fim perseguido. Os holofotes são todos de Gildeane “Gil” Leonina (seria também uma personagem interpretada pela própria Gildeane Leonina?), diarista que trabalhava na casa da diretora, Maria Clara Escobar. O filme é o resultado/processo de uma parceria que durou mais de 10 anos, e nasceu da vontade de Maria Clara de fazer um filme com (ou a partir) a singularidade de Gil.
Poeta, diarista, escritora e, principalmente, cantora, é apenas a segunda dessas profissões que encontrou aquilo que costumamos chamar de realidade. Às outras, coube um lugar mais recôndito e, por extensão, perene — o sonho. Este só existe pelo domínio de Gil sobre um quinto ofício, o de atriz, que executa habilmente neste filme, que é, para todos os efeitos, o de sua vida (não sei se o único, nem se de apenas uma de suas vidas — é este seu ouro).
Para encontrar o veio mais proveitoso de significação da obra, mais preciso seria falar de meios percorridos, ao invés de apenas um. Isso porque o filme foi feito por 10 anos, que estão sedimentados no que se dá a ver na obra final — a variação dos registros, dos lugares, das músicas, das tecnologias. Enquanto Gil, que escreveu o filme com Escobar, mostra-nos sua vida se misturando com seus sonhos, um se alimentando do outro (ou existindo pelo outro), o filme também nos mostra suas possibilidades, os lugares a que talvez nos leve, que foram descartados etc.
Isso funciona como motor de uma tensão puramente cinematográfica, já que não se sabe nem se pode saber o que virá em cada plano ou entre um plano e outro. Já o que efetivamente veio também guarda seu próprio mistério; por isso mesmo, torna-se atraente, lançando um enigma sobre qual deveria ser o status ontológico, realidade ou sonho, ou axiológico, erro ou acerto, a ser atribuído. Tudo fica nublado, pendendo por uma só certeza, fio de ariadne: a vontade de revolta.
Porque a personalidade de Gil, ou o que se imagina que ela seja, transpassa o filme. Não é só São Paulo que ela quer explodir (na verdade, ela nem quer, ela até gosta da metrópole das oportunidades, o inimigo é outro): a todo momento, atenta-se contra o espectador, contra os códigos que esperamos de um documentário ou mesmo de uma docuficção; não é de nenhuma dessas palavras limitantes que se trata, mas apenas de uma flexão sobre o próprio ato de existir e, por consequência, de filmar (a existência de outrem). A negação, ou a impossibilidade, de apreender o ser de Gil faz parte desse sentimento de revolta contra a própria lógica do filme biográfico — não se conta a história de uma cantora fracassada, realizasse-a; Gil é uma sonhadora muito bem realizada; transforma o erro em ofício, os caminhos não percorridos, em filme.
Essa revolta não é uma negação da vida, da preocupação política, das circunstâncias: Explode São Paulo vai mais com o filósofo Ortega y Gasset que dizia que nós somos nós e nossas circunstâncias, e se não as salvamos, não salvamos a nós1. Essas coisas incontroláveis, que são o próprio tecido do mundo, entram no filme, pervadem seu andar e transformam o que poderia ser uma louvação do sonho em algo a mais: uma dança entre a fortuna e a virtu, entre o caso, o acaso e o agente.
Tudo fica nublado, pendendo por uma só certeza, fio de ariadne: a vontade de revolta.
É salvando suas diferentes circunstâncias como matéria do filme-processo (em 10 anos, nós sabemos, pode acontecer, e geralmente acontece, MUITA coisa) que se salvam os sonhos da protagonista que respondem, submetendo ou sendo submetidos, à vida. Por isso, a duração de seus planos é tão importante, porque não é uma simples tentativa de naturalismo, de brincar com a linguagem documental, mas de fazer existir, num mesmo espaço, sonho e realidade, a direção e o acaso, o uno da obra e o múltiplo do mundo aberto, Gil e o mundo, a câmera e as pessoas. O sonho fecunda o real com sua ambiguidade, e o real impregna o sonho com sua irrevogabilidade.
Quando, do contrário, Gil está sozinha, é a intimidade que sobrevém; novamente, reitero, não é a negação do exterior, mas a convivência com o mais particular, o desejado, de uma maneira tão frontal que chega à criação artística mais consciente de si, de quem se é no e para o mundo. Se Goethe elaborou a vontade de atuar de seu Wilhelm Meister2 como a possibilidade de viver todas as possibilidades humanas, a atuação de Gil é o que faz ela viver exatamente com ela mesma. A elaboração do filme como processo vai se mostrando, no seu desenrolar, mais do que mera intuição que junta partes dispersas, mas como uma criação muito minuciosa tanto de Escobar quanto de Leonina.
Explode São Paulo, Gil é um filme aberto, e que deixa uma fresta aberta para o cinema brasileiro atual, geralmente muito preocupado em apontar, criticar e denunciar, mas não calmo o suficiente para se revoltar, para dar vazão à potência do tempo, e enxergar que a resposta já está aí, enterrada, como uma ferramenta, entre a areia do sonhado e a água que nutre o mundo. No meio tempo entre uma descoberta e outra, é questão de usar essa água para lavar a escada pela qual se quer subir. E cantar, cantar muito.
Título: Explode São Paulo, Gil
Direção: Maria Clara Escobar
Ano: 2025
Nacionalidade: Brasil, Portugal
Produtoras: Filmes de Abril, Terratreme
Elenco principal: Gildeane Leonina, Ivaneide Cavalaro (Dedê), Gilda Nomacce, Maria Clara Escobar
Equipe: Maria Clara Escobar e Gildeane Leonina (roteiro), Paulo Pripas, Maria Clara Escobar e João Matos (produção), Wilssa Esser e Maria Clara Escobar (direção de fotografia), Ian Capillé, Luisa Lanna, Maria Clara Escobar e Joana Luz (montagem)
“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo”, no livro Meditaciones del Quijote, publicado pela primeira vez em 1914.
Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister é um romance de formação publicado por Johann Wolfgang von Goethe em 1795.