O grito de resistência de A Fidai Film
Documentário experimental palestino articula arquivos roubados em um postulado de libertação
Há quem, ingenuamente, acredite que o genocídio palestino começou após 7 de outubro de 2023. Há também quem, munido de má-fé, afirme que não há genocídio. A Fidai Film (2024, Kamal Aljafari, PAL) prova falsas ambas as crenças.
Seu diretor, Kamal Aljafari, é um dos nomes em evidência do cinema palestino contemporâneo, e, apesar de viver em Berlim, desenvolveu uma carreira dedicada a minuciar os arquivos da opressão de seu povo. Já foi protagonista da mostra Foco do 10° Olhar de Cinema, em 2021, e retorna à programação dessa mostra com seu último lançamento.
Em A Fidai Film, o arquivo é novamente protagonista: a partir do sequestro de imagens e documentos palestinos ocorrido durante uma invasão israelense a Beirute, em 1982, Aljafari propõe uma contranarrativa. Um “resequestro”, por assim dizer, que toma para si as gravações e fotografias, e as manipula com uma intenção de guerrilha. A proposta é quase minimalista: com pouca ou nenhuma intervenção, o diretor utiliza o arquivo documental, jornalístico, propagandístico, e o relato dos viventes como dispositivos de registro histórico, é claro, mas também de expressão artística.
Em vermelho, uma rasura esconde as palavras em hebraico impressas sobre imagens da vida palestina. Depois, censura as mãos e o corpo de dois meninos. Então, inunda a tela cor de sangue.
A violência premente se intensifica à medida em que acompanhamos a investigação do material recuperado, que contrasta os campos de refugiados palestinos dos anos posteriores à Nakba1 com imagens de ocupantes sionistas. Não apenas israelenses, pois os arquivos comprovam o papel fundamental de ocupantes estrangeiros na linha do tempo dessa tragédia.
A aura do ocupante contrasta com a aura do ocupado, o que reforça o crédito inicial de um filme “concebido” por Aljafari, não “dirigido” - é uma colagem de articulações formais pré-existentes. O diretor somente justapôs o próprio olhar sionista à visada do povo palestino.
Não é um recurso de exploração da imagem trágica, a mero valor de choque e de sensibilização imediata, mas de explicitação formal do conflito. Na medida em que a existência do arquivo é manchada e evidenciada por sua própria censura, o artifício da manipulação artística o reinsere enquanto ferramenta ativa de posicionamento ético-político.
As imagens não se imprimem em nossa mente pelo horror, mas ocupam seus cômodos, insistem em ficar. Se tornam uma reflexão que nos acompanha por dias, e invadem os demais filmes, vídeos e notícias que assistimos.
A Fidai Film é um filme “concebido” por Aljafari, não “dirigido” - é uma colagem de articulações formais pré-existentes. O diretor somente justapôs o próprio olhar sionista à visada do povo palestino.
Se as imagens originais estão para sempre deformadas pela “marca d’água” das forças militares de israel, Alfajari opera sua própria deformação, inundando as imagens de glitch e do onipresente ruído vermelho. Quando a cor sólida e amorfa toma controle das silhuetas e dos rostos, retira os corpos da condição de sujeitos - lhes propõe, portanto, uma condição universal. A violência sofrida por um é sofrida por todos, e um grito singular é tão rapidamente o brado de um povo inteiro. O Kafka deleuziano é contemporaneizado no palestino Aljafari2.
Assusta perceber, portanto, que há uma imensa probabilidade de todas as personagens sem-nome desse filme, por serem vítimas de um genocídio, estarem mortas. Das figuras anciãs aos bebês e recém-nascidos, todos se tornam mortos em potencial na justaposição dos vídeos caseiros de uma família ao bombardeamento de um prédio de embaixada. O arquivo se torna uma dimensão imortal de sua existência, que é exercitado por A Fidai Film com consciência histórica e artística de uma obra memorável.
Este não é um filme pedagógico, o que surge como uma imensa qualidade. Não é preciso ter condescendência com as imagens quando se quer fazer cinema - o poder da linguagem audiovisual é autônomo, e não precisa de muletas. Assistir a uma obra montada politicamente gera uma reação sensível e mental muito maior que a onda de longa-metragens “políticos” que obrigam o espectador a sustentar um olhar determinado de antemão.
Contudo, isso não significa uma postura de isenção do diretor ao material conjurado por seu filme. Ao contrário, seu intento é declarado de início, na rasura em vermelho que não tarda a invadir toda imagem, ou no fogo digital que poderia muito bem significar o fogo por vir da destruição em massa que ocorre em escala inigualável desde 2023.
Não pude encontrar uma tradução inequívoca, mas o termo Fidai aparece volta e meia. Fida’i é o hino nacional da Palestina, e aponta para o termo plural “fedayin”, algo como “aqueles que se sacrificam”, ou “guerreiros da liberdade”. É a instauração de uma postura de combate, de busca ativa por libertação. É, então, um filme guerreiro.
Título: A Fidai Film
Direção: Kamal Aljafari
Ano: 2024
Nacionalidade: Alemanha, Brasil, Catar, França, Palestina
Produtora: Kamal Aljafari Productions
Equipe: Kamal Aljafari (Roteiro, Direção, Montagem), Ghassan Kanafani (Roteiro, Yannig Willmann (Montagem), Attila Faravelli e Jochen Jezussek (Som), Simon Fisher Turner (Trilha Sonora)
Termo que compreende a limpeza étnica do povo palestino pelas forças sionistas que ocorre desde 1947.
Gilles Deleuze e Félix Guattari escrevem “Kafka: por uma literatura menor” (1977) na defesa de uma arte de condições revolucionárias no seio do cânone estabelecido, caracterizada pela desterritorialização da língua, a ramificação do individual no imediato-político (pois toda ação torna-se política frente à ameaça do extermínio) e o agenciamento coletivo de enunciação, que produz uma solidariedade ativa na literatura em questão. Minha proposta com essa argumentação apressada é de que o cinema palestino é tão suficiente para a definição de “arte menor” quanto a literatura judaica de Kafka.